Grande parte da humanidade tem a dúvida: “para onde vamos depois da morte?”. Já outraparcela – bem menor – tem outra dúvida: “de onde eu vim”?. Essa pergunta é um pouco mais complicada e pode ser cada vez mais comum com a ajuda de óvulos e espermas doados. “Pai biológico” e “mãe biológica” deixam de serem termos da adoção de filhos já nascidos, para serem termos da doação de gametas.
Um estudo feito em 2010, pelo Institute for American Values, dos Estados Unidos, reuniu 485 adultos com idades entre 18 e 45 anos, filhos da adoção de espermas, além de aultos adotados e criados por pais biológicos. A idéia era entender a personalidade, a relação de parentesco, bem-estar e desenvolvimento social do grupo nascido da doação de espermas. O nome do estudo: “Mydaddy’snameisdonor” (“O nome do meu pai é doador”). Segundo a historiadora Elizabeth Marquardt, uma das autoras do estudo, 2/3 dos entrevistados acreditam que os pais devem contar aos filhos sobre a sua origem. E elizabth concorda com eles: “eu acho que é perigoso e psicologicamente estressante não saber de onde você vem. A pesquisa mostrou que aqueles que tiveram a origem mantida em segredo tiveram muito mais pré-disposição à problemas de saúde mental, abuso de medicamentos ou até uma tendência maior a criminalidade, do que os que sempre souberam a sua história.
Por isso que a hoteleira Lilian Seldin, de 55 anos, pretende contar o quanto antes, ao seu filho de dois anos, que ele é fruto de uma doação de esperma. “Eu sou contra qualquer tipo de mentira, ou pontos que não sejam muito transparentes. Hoje está tudo bem. Mas amanhã, vamos que um médico pergunte sobre o histórico de doenças da família. O que eu vou dizer nesse momento? Que eu não sei quem é a família dele? Muito mais simples explicar antes”, ressalta Lílian.
Não é o que pensa Lia* e Ronaldo*, ambos de 34 anos. Para ela, o filho que foi gerado dentro da barriga é um filho dela e do marido, por mais que o esperma tenha vindo de outra pessoa: “quem doou aquele sêmen passou por uma bateria de exames, doou porque quis e eu já sei que não vem comuma carga genética negativa. Se o meu marido concordou com essa opção, porque quis ser pai, ele é o pai. E eu gerei, sou a mãe. Somos um casal criando o nosso filho. Não preciso explicar para ele que o sêmen veio de outra pessoa”.
Para Vera Fehér, que coordenou a implantação do banco de sêmen do Hospital Albert Einstein e hoje é diretora do banco de sêmen Pro-seed, cada caso é um caso. “Quando é um casal tradicional, um homem e uma mulher, eu acho que não há necessidade de contar, já que vai nascer uma criança com semelhanças físicas, por causa da escolha do doador. Já no caso de mães solteiras acho que devem contar sim, para que a criança não fique procurando em quem passa pela vida dela, o seu possível pai”, explica Vera.
A psicóloga Márcia Estarque Pinheiro, especialista em psicologia clínica, diz que o momento de decidir se deve contar ou não surge quando o filho começa a questionar a sua origem – como faz a maioria das crianças. “O qe não pode acontecer é os pais pedirem para o psicólogo revelar essa história. A ajuda de um especialista é importante já que ele vai ajudar a encontrar caminhos para que isso aconteça mais naturalmente. Mas essa é uma função dos pais”, pondera Márcia.
“UMA MONTANHA RUSSA EMOCIONAL”
Para a terapeuta familiar Helena Prado, psicóloga do setor de reprodução humana do instituto de Ginecologia da UFRJ, é assim que pode ser definida a situação de quem se vê diante do dilema do “contar ou não contar”. “Eu penso que, nesses casos, as pessoas vivem uma montanha russa emocional. Transitam entre o racional – o que devem fazer em prol da saúde psíquica dos filhos – e entre o emocional, que lhes tira toda a “coragem” e os coloca diante da complexidade da situação e da fragilidade em que se encontram”, explica Helena.
A psicóloga conta que uma de suas pacientes recorreu ao ex-namorado, que já era casado, para a doação de sêmen. A princípio estava tudo bem até bater a dúvida da revelação. Foi quando ela disse a Helena: “quando fui ao seu consultório, você me perguntou se eu falaria sobre o pai deles. Naquela época, eu estava grávida e tudo o que eu queria era curtir minha gravidez. Agora que eles (os filhos) já tem dois anos de idade, começo a pensar nisso. Para falar a verdade, estou com medo danado. Estou com inveja da família do meu ex-namorado, deve ser bem mais simples uma família assim”.
Helena explica que no caso de pais solteiros, a decisão sobre a adoção de um esperma ou ovulo deve estar muito bem resolvida. A pessoa tem que estar ciente de todo o processo, o que incluiu o desenvolvimento daquela criança. Já no caso de um casal, homem e mulher devem estar bem afinados, saber o que estão fazendo para não prejudicar a unidade do casal. “Nos meus atendimentos, encontrei casais que não queriam recorrer à adoção de óvulos ou espermatozóides e sim começar o processo de adoção. Dessa forma o filho não herdaria a genética de nenhum dos dois e ambos ficariam na mesma situação. Por outro lado, há os que pensam que pelo menos o filho terá a genética de um dos dois”, conta Helena.
DÚVIDAS COM RELAÇÃO AO FUTURO
Um dos maiores temores dos pais é não deixar o filho à vontade diante do fato de que parte dele veio de outra pessoa, completamente desconhecida.
O casal Renata* e Marcelo*, que ainda tem dúvidas com relação à revelação da origem do filho, diz que teme um trauma: “não sabemos o que pode passar pela cabeça dele, ao saber que o pai não é o pai biológico, Por mais que a gente tente explicar e deixar claro o que aconteceu, ele pode ficar com uma curiosidade que não conseguiremos nunca responder. E eu não sei as conseqüências disso…” explica Renata.
Segundo Elizabeth Marquardt, a pesquisa revelou que dúvidas estão realmente entre os problemas de quem veio da doação de espermas: “eles têm muitas preocupações. Aqui nos Estados Unidos, eles têm acesso a algumas informações do doador. Daí fica na dúvida se aquelas informações são verdadeiras, se eles podem desenvolver problemas de saúde herdados do doador, se ele está vivo ou se já morreu, se ele é uma pessoa com boa índole ou não, ou ainda se vai esbarrar pela vida com um meio-irmão, desse mesmo doador, sem saber”.
Lílian já sabe o que dizer ao filho num caso desses: “é assim mesmo, meu filho. As chances são pequenas, mais existe a possibilidade. O mundo moderno é assim”. E Lílian continua, com um pensamento bem resolvido: “Pra mim o que importa é meu filho saber que ele foi fruto de muito, um amor imenso que eu tinha para dar a ele e fazer dele uma pessoa feliz. Não quero que ele seja quem é o pai dele. Todos no mundo têm pai e mãe, na origem. Até o filho de um casal gay tem pai e mãe. Como ele vai ser criado que é a diferença. E só”.
Vera Fehér deixa claro que qualquer um deveria ter dúvidas. “Quando você conhece alguém e começa a se relacionar, você antes pede a ficha completa dessa pessoa? Seu histórico médico, familiar? Acredito que não. Há traços desconhecidos no doador, assim como há em qualquer pessoa e no próprio gene da mãe, ou do pai”, esclarece Vera.
A psicóloga Helena Prado destaca que muitas vezes o medo maior é sobre o futuro dos próprios pais e não da criança. “Os pais temem a rejeição do filho quando ele souber a verdade. Por isso é importante passar segurança e confiança, desde o inicio. A rejeição que vem da sociedade também é um medo. E o pior é a rejeição dentro do casamento, quando um parceiro olha para outro e diz: “esse filho é meu e não é seu”.
“O “defeito” era seu e essa criança é mais minha que sua”, explica Helena.
O medo de ver o filho gerado com tanto amor e empenho apavora especialmente as mães. As receptoras de óvulos doados temem que o filho não a reconheça como mãe de verdade se souber da ovodoação. Célia* diz que ela e a irmã foram receptoras de óvulos. O tratamento foi feito pelo Projeto Beta, em São Paulo. Ela diz que, a princípio, não pensa em contar nada ao filho: “eu acho que ele não vai entender. O meu obstetra disse que para o bem da família eu deveria contar. Eu e minha irmã optamos por não contar a ninguém, nem mesmo para nossos pais e irmãos. Eles teriam muitas dificuldades em entender. E, a bem da verdade, quando a barriga começa a crescer, o enjôo começa a aparecer e você começa a viver a gravidez, você mesma esquece o óvulo doado, se um dia eu sentir essa necessidade, daí eu penso no que fazer”.
O debate está em aberto. As opiniões são variadas. Mas o fato é que em dez anos vai haver uma nova geração ainda maior de filhos vindo de doação de sêmen ou óvulos. Os avanços da tecnologia e da medicina estão aí para ajudar os casais que não conseguem ter filhos de pais separados? Como cuidar de filhos adotados? Hoje em dia essas são dúvidas muito menos problemáticas do que um dia já pareceram ser. E assim também deve alguém, que simplesmente quis fazer outro feliz, ao doar vida a quem achava que nunca poderia procriar.
FONTE: Revista Fértil